Entre Dissonâncias e Silêncios
Em música, um azul luminoso soa como o som reproduzido por uma flauta; um azul escuro equivale ao som do violino; um azul ainda mais escuro, um estrondoso contrabaixo; e o mais escuro de todos os azuis – um órgão. (W. Kandinsky).
No meu primeiro contato com a pintura de Antônio Mendes fui imediatamente capturada por este excerto de Kandinsky que, no seu clássico livro Do Espiritual na Arte, declara a desvinculação da arte em relação ao mundo objetivo, por acreditar sobretudo na criação artística como um processo antes regido pela “necessidade interior” do artista na sua espiritualidade, do que pela realidade natural.
Sempre fascinado com a relação entre pintura e música, ele buscava dar à pintura a mesma independência da realidade material que possui a música, pois, uma vez considerada como a mais imaterial dentre as manifestações da arte, a música naturalmente é capaz de atingir um grau de abstração que se desloca para além do mundo sensível e atua mais diretamente sobre os nossos sentidos e o nosso estado emocional.
Este debate sobre o paralelismo entre as artes, centralizado sobretudo nas relações entre pintura, poesia e música, há tempos se mostra recorrente ao longo da história. Simônides de Ceos – importante poeta do período arcaico grego – já teria formulado a equivalência entre poesia e pintura, ao qualificar a poesia como pintura que fala e a pintura como poesia silenciosa; Aristóteles estava atento à possibilidade de homologias quando, na abertura da sua Poética, aproxima poesia e música; e mais tarde Diderot, apesar de alertar sobre as especificidades de cada manifestação artística, acreditava na viabilidade de explorar as analogias entre as belezas comuns da poesia, da pintura e da música, demonstrar como o poeta, o pintor e o músico são capazes de produzirem a mesma imagem.
Foi nesse sentido que as primeiras associações que me chegaram, através das palavras de Kandinsky, somaram-se outros pensamentos que ampliaram possibilidades de novos rumos à minha percepção. Especificamente, frente à materialidade dessa série de trabalhos de Antônio Mendes também convém refletir sobre o caminho inverso, ou seja, que a materialidade presente na sua pintura funciona como um portal para o mundo imaterial. Essa inversão abre caminho para dualidades, contraposições, que nesse caso, me parecem presentes em muitos dentre os diversos aspectos da sua pintura, deste modo abrindo espaço para aparentes dissonâncias para além do campo da música, a exemplo do trabalho intitulado Silêncio Vermelho, no qual a materialidade do vermelho, seu caráter telúrico – a ciência pôs em evidência que o óxido de ferro, suas fortes variações para o vermelho é o mais presente na superfície da terra – ocupa o lugar do céu nesta pintura, enquanto que as diversificadas nuances de grises azulados, que conduzem nossa imaginação aos domínios celestes, ocupam o espaço abaixo da linha de horizonte, invertendo o sentido terra/céu. Aqui e acolá surgem pequenas arestas negras – pausas de respiração? – que se insinuam para além ou aquém da massa celestial, que, apesar de etérea, apresenta ranhuras e linhas divisórias em forma de massa tintórea, apontando caminhos celestes, mas antes de tudo nos lembrando que se trata de uma pintura, cuja ligação com a materialidade terrestre é inegável.
O mesmo acontece em relação a alguns elementos que surgem vinculados à realidade natural em outras obras desta série: formas geométricas tortuosas - utensílios da civilização? - se insurgem em meio a portais desérticos, elementos solitários, quase humanos.
Noutras pinturas, elementos paisagísticos apenas pontuam discretamente a composição, entretanto propositalmente se “perdem”, por não se assumirem exatamente como paisagem, porque se entregam a posicionamentos de equivalência com formas geradas a partir de gestos que lembram, em termos de intensidade, as estruturas tachistas de Franz Kline, ao mesmo tempo distanciando-se dele no sentido da sua intencionalidade, pois pelo visto, esses gestos acionados por Antônio, comportam mais um certo sentido psicanalítico, já que seu processo de trabalho, é algumas vezes pontuado por automatismos psíquicos que envolvem o funcionamento de estados mentais de uma saudável suspensão em relação ao mundo objetivo, necessária a todo o processo de criação, se e somente se o artista almejar atingir a verdade da sua pintura.
Considerando então esse conjunto de trabalhos, vejo-os como uma espécie de um diário do artista que segue os fluxos e refluxos da vida, na impossibilidade de fixar-se.
Essa não localização, ou melhor, essa localização “entre” se deixa perceber em todas as obras que compõem essa mostra, abrindo possibilidades para o olhar através de portais e caminhos materiais/etéreos para diversas direções primando sobretudo pela liberdade de estar, de ser e de imaginar.
Pelo seu relato em diversas conversações que travamos, percebo que a pintura está na sua vida em plena comunhão com o seu exercício como psicólogo e músico, práticas entre as quais ele transita cotidianamente.
Bete Gouveia, 25 de setembro de 2022